Vegetarianismo por Sílvia Ferreira

Na Pré-História

O vegetarianismo surgiu há cerca de 5 milhões de anos atrás. O nosso antepassado mais antigo, o Australopithecus Anamensis, alimentava-se de frutas, folhas e sementes, vivendo em perfeita harmonia com os animais mais pequenos, que poderia facilmente apanhar para se alimentar, mas a índole destes hominídeos era pacífica e assim continuou até ao Australopithecus Boesei (existiu há cerca de 2,4 – 1 milhão de anos).

Com o domínio do fogo e o desenvolvimento das armas, o Homo Neanderthalensis, nosso antepassado mais recente (127.000 - 30.000 anos), caçava, em grupos de 10 a 15 homens, animais de grande porte como os mamutes e outros animais mais pequenos como os veados, dos quais tudo era meticulosamente aproveitado. Mais tarde, as populações humanas foram criando culturas de vegetais fixas, que começaram a atrair animais como porcos selvagens, canídeos, cabras, aves, ratos e pequenos felinos, que foram sendo domesticados. Alguns animais começaram a ser mortos para consumo. Foi então que o Homem se tornou sedentário e começou a encarar os animais como alimentos.

Nas Civilizações Antigas


Por volta de 3200 AC, o vegetarianismo foi adoptado no Egipto por grupos religiosos, que acreditavam que a abstinência de carne criava um poder kármico que facilitava a reencarnação.

Na China e no Japão Antigos (século III, AC), o clima e os terrenos eram propícios às culturas de cereais e leguminosas. O primeiro profeta-rei chinês, Fu Xi, era vegetariano e ensinava às pessoas a arte do cultivo, as propriedades medicinais das ervas e o aproveitamento de plantações para roupas e utensílios. Gishi-wajin-den, um livro de história da época, escrito na China, relata que no Japão não existiam vacas, cavalos, tigres ou cabras e que os povos viviam das plantações de arroz, do peixe e dos crustáceos que apanhavam. Muitos anos mais tarde, com a chegada do Budismo, a proibição da caça e da pesca foi bem recebida pelas populações japonesas.

Na Índia, animais como as vacas e macacos foram adorados ao longo dos anos por simbolizarem a encarnação de divindades. O rei indiano Asoka, que reinou entre 264-232 AC, converteu-se ao Budismo, chocado com os horrores das batalhas. Ele proibiu os sacrifícios de animais e o seu reino tornou-se vegetariano. A Índia, ligada ao Budismo e Hinduísmo, religiões que sempre enfatizaram o respeito pelos seres vivos, considerava os cereais e os frutos como a melhor forma (mais equilibrada) de alimentar a população. Juntamente com estas práticas religiosas, certos exercícios, como o Yoga, associaram-se ao não consumo de carne, para alcançar a harmonia e ascender a níveis espirituais superiores.

Para os povos celtas e aztecas, intimamente ligados à natureza, a carne era reservada para grandes ocasiões: as festas que serviam para estreitar os laços sociais e ligar o mundo humano ao dos deuses pagãos. De resto, quando não estava ligado ao sacrifício, o consumo de carne dependia da caça. Apenas a caça escapava à lógica do sacrifício, mas no sistema de valores da cultura celta era uma actividade marginal.

Na Cultura Grega e Romana

A ideologia alimentar grega e romana foi fundada sobre os valores do trigo, da vinha e da oliveira. Este modelo esteve frequentemente ligado à ideia de frugalidade: o pão, o vinho e o azeite (aos quais eram acrescentados os figos e o mel) eram elevados à categoria de símbolos de uma vida simples, de uma pobreza digna, feita de trabalho duro e de satisfações singelas. Na época, estas imagens eram a proposta alternativa dos gregos ao luxo e à decadência do povo persa, conforme mostram os textos clássicos. A proeminência do pão na cultura antiga era também decorrente da primitiva ciência dietética, que colocava o pão no topo da escala de nutrição. Os médicos gregos e latinos viam no pão o equilíbrio perfeito entre os "componentes" quente e frio, seco e húmido, conforme os ensinamentos de Hipócrates.

Em contraste, o consumo da carne foi sempre problemático. Imagem do luxo, da gula, da festa, do privilégio social, a carne não era considerada pelas civilizações antigas do Mediterrâneo como um bem tão essencial quanto os produtos da terra: o seu preço não era sujeito a um controlo político como eram os cereais. Em certas épocas, a venda de carne chegava a ser proibida ao público.

O matemático e filósofo grego Pitágoras e o filósofo romano Platão advogavam a não crueldade para com os animais. Eles verificaram que as vantagens de um regime vegetariano eram imensas e que este regime era a chave para a coexistência pacífica entre humanos e não humanos, focando que o abate de animais para consumo embrutecia a alma das pessoas. Os argumentos de Pitágoras a favor de uma dieta sem carne apresentavam três pontos: veneração religiosa, saúde física e responsabilidade ecológica. Estas razões continuam a ser citadas hoje em dia por aqueles que preferem levar uma vida mais responsável. Os Essénios foram um antigo povo judeu, que viveu durante o segundo século AC, e reagiram ao excessivo abate de animais que eram feitos muitas vezes num só dia. Acabaram por ser perseguidos e mortos pelos romanos.

No Cristianismo

O Cristianismo primitivo, com raízes na tradição judaica, viu o vegetarianismo como um jejum modificado para purificar o corpo.
Tertuliano (155-255 DC), Clemente de Alexandria (150-215 DC) e João Crisóstomo (347-407 DC) ensinaram que evitar a carne era uma maneira de aumentar a disciplina e a força de vontade necessárias para resistir às tentações. Isto tornou as restrições dietéticas, como o vegetarianismo, muito comuns no comportamento cristão da época. E estas crenças foram transmitidas ao longo dos anos de uma forma ou de outra - por exemplo, a proibição de carne (excepto peixe) da Igreja Católica Romana nas sextas-feiras, durante a Quaresma.

Com o estabelecimento do Cristianismo, surgiram ideias de supremacia humana sobre todas as criaturas, mas muitos grupos não ortodoxos não partilhavam desta visão. Desde então, no decorrer da Idade Média, todos os seguidores das filosofias que eram contra o abate e abuso dos
animais, eram considerados fanáticos, hereges e frequentemente perseguidos pela Igreja e queimados vivos. No entanto, conseguiram escapar a este terrível destino dois notáveis vegetarianos – Santo David (Santo Padroeiro de Wales) e São Francisco de Assis. O mundo medieval considerava que os vegetais e cereais eram comida para os animais. Somente a pobreza compelia as pessoas a substituírem a carne pelos vegetais. A carne era o símbolo de status da classe alta. Quanto mais carne uma pessoa pudesse comer, mais elevada era a sua posição na sociedade.

No Renascimento

No início da era renascentista, a ideologia vegetariana surgiu como um fenómeno raro. A fome e as doenças imperavam, enquanto as colheitas falhavam e a comida escasseava. A carne era muito pouca e um luxo apenas para os ricos. Foi durante este período que a filosofia clássica (greco-romana) foi redescoberta. O Pitagorismo e o Neo-Platonismo tornaram-se novamente uma grande influência na Europa.

Com a sangrenta conquista de novos territórios, novos vegetais foram introduzidos na Europa, tais como as batatas, a couve-flor e o milho. A adopção destes novos alimentos trouxe imensos benefícios à saúde, ajudando a prevenir doenças dermatológicas, que eram na altura muito frequentes.

No Iluminismo

Com o Iluminismo do século XVIII, emergiu uma nova perspectiva do lugar do Homem na ordem da criação. Argumentos de que os animais eram criaturas inteligentes e sensíveis começaram a ser ouvidos e objecções morais a serem colocadas, à medida que aumentava o desagrado pelo desrespeito e abuso dos animais.

Nas religiões ocidentais houve um ressurgimento da ideia de que, na realidade, o consumo de carne era uma aberração e ia contra a vontade de Deus e contra a genuína natureza da humanidade. Nestes dias, os métodos de abate eram extremamente bárbaros. Os porcos eram chicoteados até à morte com cordas cheias de nós para tornar as carcaças mais tenras, e os pescoços das galinhas eram golpeados, para depois serem penduradas e deixadas a sangrar até morrer. Vegetarianos famosos deste período incluíram os poetas John Gay e Alexander Pope, o médico Dr. John Arbuthnot e o fundador do movimento metodista John Wesley. Grandes filósofos como Voltaire, Rousseau e Locke, questionaram a inumanidade do Homem em relação aos animais; e a obra de Paine, The Rights of Man, de 1791, despertou muitos assuntos a
respeito dos direitos dos animais.

No século XIX


A influência do Cristianismo radical, no século XIX, deveu-se à grande difusão do vegetarianismo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Os fundamentalistas cristãos provieram de grandes congregações existentes na recente e pobre zona urbana. Estes representantes estavam a sair da Inglaterra e a espalhar-se por outros países europeus, e as comunidades vegetarianas nos Estados Unidos eram formadas maioritariamente por Adventistas do Sétimo Dia. Um notável praticante desta religião era o Dr. John Harvey Kellogg, o inventor dos cereais Kellogg's. Por volta de 1880, os restaurantes vegetarianos eram populares em Londres e ofereciam refeições baratas e nutritivas.

No século XX

Com o virar do século XX, a população britânica encontrava-se ainda num estado de pobreza. A Sociedade Vegetariana Britânica, durante a crise de 1926, distribuía alimentos às comunidades mais carenciadas - o vegetarianismo e o humanitarismo estiveram sempre proximamente
relacionados.

Devido à escassez de alimentos durante a Segunda Guerra Mundial, os britânicos foram encorajados a "Escavar para a Vitória" (Dig For Victory), para cultivarem os seus próprios vegetais e frutas. A dieta vegetariana manteve a população, e a saúde das pessoas melhorou muito durante os anos em guerra.

Nos anos 50 e 60 do século XX, muitas pessoas tomaram consciência do que se passava nas unidades de produção intensiva, introduzidas após a guerra. O vegetarianismo tornou-se muito apelativo quando as influências orientais se espalharam pelo mundo ocidental.

Durante as décadas de 80 e 90, o vegetarianismo ganhou um maior ímpeto, quando o desastroso impacto que a população humana estava a causar no planeta se tornou mais evidente. Os assuntos ambientais dominaram os noticiários e estiveram durante muito tempo em primeiro
plano na política. O vegetarianismo foi encarado como parte do processo para a conservação dos recursos.

Actualmente

Mais recentemente, assuntos como as importações de gado foram motivo de oposição ao consumo de carne por parte de muitas pessoas, por todo o Reino Unido. Preocupações em relação à saúde surgiram quando as pessoas se aperceberam de que os animais para consumo estavam infectados com doenças como a "doença das vacas loucas" (BSE), listeria, salmonelas e gripe das aves.

Desde os anos 80 do século XX, a consciência popular tem-se focado cada vez mais num regime de vida saudável. O vegetarianismo passou então a ser associado à saúde e dados cada vez mais concretos apontaram a carne como causa de inúmeras doenças. Consequentemente, o não consumo de carne e outros produtos animais foi associado à não-violência e ao respeito pelos animais. Desde então organizações de defesa animal e promoção do vegetarianismo começaram a ganhar cada vez mais força e a desenvolver acções mundiais.

Os benefícios do vegetarianismo têm sido evidentes ao longo de todas as culturas, e uma dieta exclusivamente à base de vegetais tem mantido a população humana desde há milhões de anos atrás. Com a população global a crescer de forma exaustiva e os recursos a decrescerem de forma assustadora, o vegetarianismo é considerado por muitos como a solução para todos os problemas da humanidade e irá influenciar grandemente o futuro das gerações que se seguem.

Sílvia Ferreira
(Associação Vegetariana Portuguesa)

Publicado com a autorização da Associação Vegetariana Portuguesa e da autora do artigo, Mais informações sobre vegetarianismo em www.avp.org.pt. Imagem de topo da autoria de Francisca Bravo, usada sob licença creative commons.

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