Bhaja-Govindam - Lilian C. Gulmini

Resumo
O poema sânscrito intitulado Bhaja-govindam, de autoria do pensador indiano Sankara (c. 788-820 d.C.), foi composto sob a forma tradicional do cântico devocional (bhajan), e seus versos conformam a admoestação de um jovem asceta a um velho gramático debruçado sobre os livros. Sob esse disfarce figurativo, o poema apresenta a resposta de Sankara aos ataques dos oponentes de sua doutrina (o Advaita Vedanta) e afirma a sua interpretação de valores da cultura. A partir de uma proposta de tradução para o vernáculo de algumas estrofes do poema, a comunicação pretende iluminar tais aspectos contextuais e discutir sua relevância num processo de tradução intercultural.

1 - Apresentação do poema
"O asceta e o erudito": sobre esse encontro é fundamentado o poema sânscrito Bhaja-Govindam, de autoria de Sankara, célebre pensador da Índia medieval (788-820 d.C.). No encontro que ocasiona o poema, é o asceta quem tem a voz e canta as estrofes de admoestação ao erudito, conclamando-o a juntar-se a ele. Neste artigo apresentamos a tradução de algumas dessas estrofes e procedemos com uma leitura que, suscitada pelo tema de superfície do encontro entre o asceta e o erudito, vasculha os valores culturais e contextuais aí subjacentes para iluminar a compreensão do texto traduzido.

Algumas palavras introdutórias são necessárias acerca do poema sânscrito. Na verdade, em seu contexto de produção, trata-se de um cântico: são estrofes compostas para serem cantadas, intercaladas por um refrão que se repete insistentemente, sintetizando o âmago da mensagem. Construído nesses moldes de repetição contínua de um fio melódico e de um fio temático, com estrofes que se intercalam por um refrão sempre idêntico, o Bhaja-Govindam insere-se na modalidade popular de cântico devocional na Índia, o bhajan, o qual pode variar de duas ou três estrofes que se repetem até uma extensa ladainha marcada pelo refrão. No caso deste poema em particular, as versões disponíveis variam de trinta e uma a trinta e três estrofes.

Conta a tradição que Sankara, peregrinando com seus discípulos pela Índia, ao passar pela cidade de Kasi (Benares), logo ao amanhecer, viu um velho pandita (erudito) debruçado sobre a gramática sânscrita de Panini, estudando com afinco. Tomado de compaixão pelo velho homem cujo esforço, aos seus olhos, era vão, Sankara cantou de uma só vez as doze primeiras estrofes do poema. Inspirados pela emoção do mestre, cada um de seus catorze discípulos presentes cantou uma estrofe. Ao final Sankara acrescentou mais quatro ou cinco estrofes, e assim foi composto o Bhaja-Govindam. Por isso as doze primeiras estrofes atribuídas à autoria de Sankara são chamadas de dvadasa-manjarika-stotram, e as catorze seguintes de caturdasa-manjarika-stotram.

Apresentamos neste artigo uma proposta de tradução do dvadasa-manjarika-stotram, seguida de nossa análise e comentários:

1 - (REFRÃO): "Louva o Senhor, louva o Senhor;
ao Senhor louva, ó homem tolo!
Quando chegar perto a morte certa,
não poderá te salvar tua árdua tarefa.

2 - "Ó tolo, mata, pois, a sede pelo alcance de opulência;
toma uma boa resolução: a saciedade da consciência.
A riqueza que obténs por tua própria ação,
esta, por isso, eleva tua condição.

3 - "O umbigo de uma mulher, seu seio arredondado:
tendo-os visto, que não fiques atordoado.
A mudança dessa carne e sua decadência
devem ser ponderadas sem cessar na consciência.

4 - "Como a água que cai na pétala de lótus, inconstante,
Assim é a vida do homem; só um instante.
Dilacerado pela doença, pelo orgulho envolvido
e golpeado pela tristeza; tal é o mundo reunido.

5 - "Enquanto um homem se ocupa em adquirir propriedade
recebe do séquito de parentes afeto e celebridade.
Mas quando, no poente da vida, cambaleia num corpo caído,
quem na casa se importa com o velho esquecido?

6 - "Enquanto no corpo o sopro da vida habita,
em sua casa sua saúde é sempre referida.
Mas quando é partido o alento e o corpo esquecido,
Até a esposa teme tocar no falecido.

7 - "Quando criança, em passatempos ocupado;
quando jovem, com as jovens ocupado;
quando maduro, em mil pensamentos absorto;
mas no Brahman Supremo quem está absorto?

8 - "Quem é tua amada, teu filho é quem?
É o encanto do samsara que te arrasta e te mantém.
Quem és? De onde vens? Qual tua propriedade?
Ó irmão, aqui neste mundo, pondera sobre a verdade.

9 - "Na associação com os sábios cessa toda ânsia;
com o fim dos anseios morre a ignorância;
morta a ignorância, surge a verdade sem mudança;
nessa imutável verdade, ainda em vida, dá-se a liberação.

10 - "Quando se vai o vigor, qual o prazer do apaixonado?
Com a estiagem que seca as águas, o que resta do lago?
Onde estão os parentes para o que já não tem propriedade?
Onde está o samsara para o que conhece a verdade?

11 - "Não te ufanes da juventude, de tuas posses ou teu amigo;
a morte, num instante, tudo isso carrega consigo.
Livrando-te disso tudo, dos frutos de Maya, a Ilusão,
e alcançando o Brahman, terás a compreensão.

12 - "Noite e dia, crepúsculo e aurora,
primavera e inverno, vêm e vão embora.
Passa a vida do homem, diverte-se a morte certa,
mas o vendaval de seus desejos não o liberta."

"Com este buquê de doze estrofes enumerado,
ao estudioso de gramática recitado,
foi ensinada a sabedoria profunda do que existe
pelos pés sagrados de Sankara, o Ilustre.”

2 - Forma e conteúdo
O resultado da tradução parece-nos, à primeira vista, uma seqüência de estrofes bastante simples. E de fato a modalidade do bhajan, o canto popular, faz uso da repetição de fios melódicos e palavras de uso comum, propositalmente evitando o refinamento e a sutileza estética do gênero kavya, a poesia sânscrita clássica. Porém, há um fato a observar: o emprego de rimas em final de verso, recurso comum em nossa tradição poética, constitui uma inovação mesmo no caso deste cântico de Sankara. Isso porque no contexto sânscrito privilegia-se a sonoridade dos versos, sobretudo, fazendo- se uso de aliterações, assonâncias e jogos de sílabas, sempre nos limites de uma métrica bem definida. Por isso é interessante notar que, na tradução para a língua e cultura de chegada, a simplicidade formal do poema original nos é sugerida justamente por um traço que, na cultura de partida, constituía uma exceção.

À parte este caso das rimas finais, o fato é que muito da musicalidade do poema foi sacrificada em prol da literalidade na tradução dos conteúdos. Isso porque tivemos – como todo tradutor – uma intenção específica por detrás da tradução proposta: em nosso caso, retomar alguns elementos da cultura de partida, inseri-los nos comentários à tradução, e com isso demonstrar a relevância de dados contextuais na compreensão de textos provenientes de culturas muito distantes da nossa.

Argumentaria o leitor que, à primeira vista, o texto já foi perfeitamente compreendido em sua versão para o português, e não haveria necessidade de comentá- lo. Será? Acompanhemos a análise.

Para acompanhar o resto da análise, por favor, consulte o documento PDF disponível aqui.

Copyright © 2009 Lilian C. Gulmini. Todos os Direitos Reservados. Nenhuma parte deste texto pode ser reproduzida, transmitida, transcrita ou traduzida para qualquer idioma ou linguagem de computador, sob qualquer forma ou por quaisquer meios sem a autorização prévia por escrito por parte da autora.

Lilian C. Gulmini possui graduação em Bacharelado em Letras pela Universidade de São Paulo (1997), graduação em Licenciatura Plena em Inglês e Português pela Universidade de São Paulo (1998), Mestrado em Lingüística pela Universidade de São Paulo (2002) e Doutorado em Lingüística pela Universidade de São Paulo (2007). Atualmente é Professor Doutor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Sânscrito, atuando principalmente nos seguintes temas: Língua e Literatura Sânscrita, Cultura Sânscrita, Semiótica e Tradução. Contacte a autora: liliangulmini@yahoo.com.br.

Agradecimento especial ao site om.pro.br, “O Som e a Escritura”, nomeadamente na pessoa de João Carlos Barbosa Gonçalves, pelas facilidades concedidas na publicação deste material.

Para escutar Bhaja-govindam clique aqui. Para assistir ao vídeo clique aqui. Imagem de topo retirada de kamakoti.org.

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