Cecilia Bastos - Devoção e Yoga

Este artigo faz parte do trabalho de campo realizado durante o doutorado em ciências sociais na UERJ (PPCIS)1 e também durante a continuação deste campo no pós-doutorado em antropologia social no Museu Nacional (PPGAS/UFRJ).2 A questão principal é entender os significados da devoção de um grupo de estudantes de Vedanta do Rio de Janeiro e em que sentido parte dos interlocutores se considera hindu. A fim de entender melhor as ações e representações dos alunos sobre o sentido atribuído à devoção, foi fundamental, através da observação participante, fazer parte desse grupo como estudante do curso da Bhagavad Gita, entre outros cursos de Vedanta.

Apesar de os professores de Vedanta do grupo considerá-lo uma “tradição de ensinamento” do “conhecimento sobre a natureza livre de limitação do Eu”, foi baseada na aprendizagem a respeito de yoga, ensinado na Bhagavad Gita, ou apenas ‘Gita’, que optei denominar o ensino e prática de Vedanta como ‘filosofia de vida’, por considerar este conhecimento ‘incorporado’ ao ethos do estudante. Ao tentar entender o significado da filosofia de vida do grupo, no qual práticas de meditação e yoga são recorrentes e paralelas ao estudo de textos sagrados hindus, busco compreender como os alunos entendem a prática da meditação, o ‘Eu’ consciência, seu papel (dharma) no mundo, a ‘ordem’ cósmica, o sentido de devoção e as mudanças decorrentes de seus projetos de busca da ‘liberação’ do samsara, entendido como a continuidade de infelicidade e felicidade, nascimento e morte, um ciclo contínuo e sem fim marcado pela ignorância, ilusão e confusão. Acima de tudo, procuro analisar o sentido de suas buscas espirituais entendidas como projeto de vida,3 o que incluiu investigar o que querem dizer quando se denominam ‘buscadores’ e o significado, para eles, do viver uma ‘vida de yoga’.

O curso da Gita
Esclareço que, toda vez que estiver citando os aprendizados que obtive no curso da Gita, como ensinados na associação cultural Vidya Mandir,4 em Copacabana (RJ), refiro-me ao diálogo permanente entre Krishna e Arjuna, já que é por meio desses ‘personagens’ que todo o ensinamento é transmitido. Ressalto que este artigo está baseado não apenas nas aulas que assisti do curso da Gita,5 mas também nas conversas e entrevistas junto ao grupo, as quais retratei em meu diário de campo entre 2009 e 2019. Trata-se, portanto, da visão dos professores e alunos do Vidya Mandir sobre a ‘filosofia’ do Vedanta, o estilo de vida ‘de yoga’ e a busca pela ‘liberação’.

Vedanta, como é ensinado, não é considerado uma religião, mas a base da religião hindu, também podendo servir de base para qualquer religião. É, portanto, melhor compreendido como um pensamento ou filosofia, no sentido de uma base para o pensamento humano da ‘realidade’; sendo assim, não se considera Vedanta, nem as Upanishads, como reduzidos a uma religião ou filosofia de um aspecto apenas. Segundo Dilip Loundo, Vedanta é considerado um ‘método soteriológico de autorrealização’, que foi consolidado pelo filósofo Shankara, no século VIII, ao estressar a união radical do Absoluto com o mundo não substancial de multiplicidade; um de seus fundamentais princípios é a postulação de uma fundamental não diferença (advaita) entre o ‘Eu’ (atma) e o Absoluto (Brahman) (Loundo 2018).

Texto religioso hindu, do épico Mahabharata, a Bhagavad Gita é considerada uma das principais escrituras sagradas da Índia. Esta obra relata o diálogo de Khrishna (uma das encarnações de Vishnu) com Arjuna (seu discípulo guerreiro) em pleno campo de batalha, no qual são colocados importantes pontos da filosofia indiana,6 principalmente o conhecimento da natureza do ‘Eu’ e sua relação eterna com toda a criação e aquilo que a transcende.

A Gita não se constitui de um tratado de filosofia sistemático, mas, segundo Dasgupta (2009), de um curso prático de introdução à vida e conduta, no qual a filosofia abstrata se transforma em um insight da natureza da vida prática e da conduta correta, tópicos que são discutidos com toda a intimidade da relação pessoal entre Krishna e Arjuna, o que também sugere a existência de uma relação pessoal entre ‘Deus’ (Krishna) e o homem, pois o ‘Deus’ da Gita não é parte de uma filosofia abstrata ou teologia, mas um que pode ser homem, capaz de ter todas as relações pessoais humanas.

Ao lermos os diálogos das Upanishads, surpreendemo-nos com o alto nível intelectual dos discípulos que lá são descritos, pois quando eles fazem as perguntas aos seus mestres, é necessário ler os comentários de outros autores sobre tais perguntas para entendê-las, sendo que o mesmo acontece com as respostas. Na Gita, em contraposição, quando Arjuna faz as perguntas, fica clara sua ‘humanidade’ e, por isso, os leitores sentem uma identificação plena com ele. Ao ouvir o diálogo entre mestre e discípulo e perceber o quanto as questões de Arjuna são semelhantes às dos alunos, a questão que surge é saber o que acontece ao final da Gita: será que Arjuna consegue alcançar a ‘liberação’?7 E o fato de saberem lhes dá esperança de também alcançá- la (exatamente por Arjuna ser um discípulo tão ‘humano’ e falar de maneira tão íntima e sincera com seu mestre). Os estudantes, dessa maneira, sentem-se identificados com os problemas de Arjuna, já que os entendem como problemas atuais.

Entendendo a criação do mundo
Krishna propõe, na Gita, que a causa do universo é a consciência. Então Arjuna pergunta qual a relação que existe entre a consciência, que seria a causa, e o universo, que seria o efeito. Seu mestre explica que, se a consciência ‘faz’ alguma coisa (ela cria ou faz aparecer, por exemplo, quando uma pessoa pega o barro e faz um pote), é necessário entender como que, a partir da consciência, temos o universo, ou seja, qual seria o ‘passo’ entre a consciência e a criação do universo. Se existisse algum ‘passo’, significaria que a consciência ‘faz’ alguma coisa e, com isso, ela seria limitada e estaria sujeita à ação. Então, como essa consciência ‘faz’ o universo? A resposta é que essa ‘criação’ ou esse ‘passo’ (da consciência para o universo) acontece sem nenhum tipo de movimento por parte da consciência, já que é uma ‘projeção’, devido ao poder de maya, o poder de fazer aparecer e ‘projetar’.8

Uma ilustração para a causa do universo é a luz, que não realiza nenhuma ação, assim como quando vemos um filme projetado em movimento. Ali, vemos uma borboleta, por exemplo, que está voando. O movimento de luz que aparece na tela na realidade não está fazendo nada, ou seja, a luz não está se transformando, ‘virando’ borboleta – a luz somente ilumina. A criação, ou melhor, a ‘projeção’, acontece devido a essa tela que faz com que a projeção da luz (equivalente ao sol) se torne várias luzes diferentes. Temos aí uma multiplicidade de coisas criadas que são nada mais que luz e tela (ausência de luz). Desta perspectiva, a luz, como o sol, não faz ou cria a forma que está ali, nem a transforma, pois ela é somente presença. A luz é a responsável, mas não ‘pratica’ a ação. A natureza da luz é iluminar, mas ela não faz nenhum movimento; assim como o fogo tem sua natureza inerente, que é o brilho, o calor, que queima, mas não se pode dizer que ele faz a ação de queimar, já que não realiza uma ação – ele é, por natureza, calor e luz. Mesmo na cozinha, por exemplo, quando o fogão está aceso, é a ação da pessoa que coloca a mão no fogo e se queima, quer dizer, o fogo não ‘correu’ na direção da pessoa para queimá-la; assim, ele é entendido como ‘presença’, ou seja, por sua própria natureza ser de brilho e calor, ele queima – mas sem realizar nenhuma ação.

A natureza da consciência, dessa perspectiva, é entendida como responsável por toda a criação, toda a multiplicidade de formas e de cores. Como as cores são criação da luz, existe essa multiplicidade toda. A consciência, que é entendida como a ‘natureza’ do sujeito, não realiza a ação de criação; nesse caso tampouco existe conexão entre a ação e o resultado da ação, já que a consciência é aquela que nada faz.9

Quem ‘pratica’ a ação seria o poder de criar, mayashakti, que está na mente, o que significa que a mente cria os pensamentos, as ideias, o desejo; os sentidos criam a informação; e a mente, o intelecto e os sentidos são os responsáveis pelo movimento. Na consciência, não existe nenhum tipo de movimento, mas existe movimento em todo o universo na forma dos vários objetos que são percebidos pela mente, intelecto e sentidos. O corpo em si é inerte, não realiza movimento algum, assim como a consciência não se move – ela é. Sendo assim, a ação é feita a partir da união entre esses dois: a consciência, de um lado e a mente, o intelecto e os sentidos, de outro. Somente no contato entre os dois que toda a ação acontece, quer dizer, nem o corpo isoladamente produz alguma ação, nem atma em si produz alguma ação, mas devido à maya na forma da mente, intelecto e sentidos é que toda ação é realizada.

É dessa maneira que os interlocutores da pesquisa apreendem o ensinamento de que o ‘Eu’ é consciência – consciência que não tem limite, que não está enquadrada dentro do corpo, que é livre de limitação – e, desse modo, conseguem entender que o ‘Eu’ é livre de limitação e maior que o espaço. Também buscam a compreensão de que todo o universo existe no espaço e de que o espaço existe na consciência e, finalmente, chegam à conclusão de que ‘tudo existe na consciência’.

Ishvara ou a ordem cósmica
Max Müller (2007:122) indica que o que chamamos de religião nunca poderia ter nascido do medo e do terror somente, já que religião se relaciona à “confiança”, que teria surgido, inicialmente, das impressões da ordem e sabedoria da natureza na mente e no coração do ser humano e também, mais particularmente, dos eventos regularmente recorrentes – como o retorno do sol, a renovação da lua, a ordem das estações, a lei de causa e efeito – gradualmente descobertos em todas as coisas e atribuídos, em última instância, a uma causa de todas as causas, qualquer que seja o nome que quisermos dar a ela.

Müller sugere que o crescimento religioso na Índia criou a noção de que haveria uma ordem cósmica que governaria todo o universo, a qual ele chama de ‘straight line’, que pode ser traduzida como uma linha reta, direta, clara, confiável ou correta, a qual pode ser aplicada a straight line do sol em seu curso diário, a que é seguida por dia e noite, a que regula as estações, a que, apesar de muitos desvios momentâneos, descobriu-se que percorre todo o domínio da natureza; e também ao sentido de uma ‘direta ou correta linha’, quando aplicada pelo bom senso, à ‘Lei da Natureza’ e, quando aplicada ao mundo ético ou moral, pela qual nossa vida é fundamentada, a eterna lei do correto e da razão ou ‘àquilo que faz justiça’. O autor explica que um olhar mais atento sobre a natureza levou ao reconhecimento de straight lines que envolvem tudo, em uma lei na qual podemos confiar, uma lei que ‘fala dentro de nós’ com a divina voz da consciência, e nos diz,‘isto é certo’, ‘isto é verdadeiro’. Essa lei que governa o universo seria também a mesma lei que nos governa e nos aponta para o que é certo e verdadeiro, e é também o que Müller denomina ‘consciência’.

No curso da Gita, essa mesma lei ou ‘ordem cósmica’ (Ishvara) é ensinada de modo objetivo: a pessoa tem uma meta, faz suas ações, mas também sabe que existe uma ordem cósmica que pode estar coincidindo com seus desejos e ações – ou pode ter outros planos que são o próprio karma da pessoa e que, mais à frente, ela acabará compreendendo. Dessa maneira, a questão se baseia em olhar a situação de uma forma mais ampla, não apenas da perspectiva do indivíduo, o que ‘eu’ quero e o que ‘eu’ fiz, mas entender que existe o ‘meu’ desejo, mas existem outros fatores (outras pessoas e situações) que podem ser oportunidades nas quais ‘eu’ não havia pensado antes, mas que, no momento, podem aparecer. Assim, a pessoa pode apreciar o universo pensando ‘cosmicamente’ (ou trazendo a compreensão de Ishvara, que é a ordem cósmica, para sua vida).

O devoto, como os interlocutores me explicaram, é a pessoa que entende o significado mais profundo do ‘Eu’, que é consciência, que tem a visão daquele que é ‘comum’; ela ‘vê’ o ‘Um’ ou Ishvara em todas as situações de sua vida, agradáveis ou desagradáveis. Também é entendido como tendo capacidade de questionar e compreender as situações com uma mente capaz de oferecer a ação à Ishvara, porque isso é o ‘adequado’ e assim a pessoa, fazendo o que deve ser feito, escolheria o dharma.

Independente de se pensar ou não em Ishvara, para os vedantinos, ele existe a todo o momento, porque eles sabem que todo o universo e sua causa são Ishvara. Portanto, para a pessoa que entende o significado de Ishvara, ele não desaparece jamais, porque ela sabe que Ishvara existe nela. Nesse caso, existe uma ‘identidade’ entre os dois, ou seja, ela é entendida enquanto parte do ‘todo’ em termos do seu corpo e mente; da mesma maneira, ela pertenceria a esse universo cósmico (faria parte dele, não estaria separada dele) e, fundamentalmente, ela seria consciência – a mesma consciência que é Ishvara.

Segundo a tradição védica, Ishvara é o conhecimento que ilumina o passado, o presente e o futuro; é a consciência (atma ou Brahman) somada à ignorância cósmica (maya ou shakti). A ignorância, nesse contexto, é entendida como um ‘colorido’ a um objeto que não o ‘pinta’, mas que faz acreditar que o objeto seja daquela cor.10 Então maya, a ignorância cósmica (ela é cósmica porque é total, não é de um indivíduo apenas), jogaria um ‘véu’ na consciência, ou seja, ‘encobriria’ a consciência, só que não totalmente, porque sua luz se manifestaria através de maya. Dessa forma, maya seria aquilo que encobriria a visão do indivíduo, a ponto de fazer com que ele fique ‘iludido’.

Ishvara é ensinado como o conhecimento, no sentido de conhecer todas as coisas que já passaram, as que existem nesse momento e as que existirão (todos os seres e coisas que ainda estão por vir). Desse modo, Ishvara contém presente, passado e futuro, pois tudo está contido na mente cósmica (que é Ishvara). Na mente do individuo está contido o seu passado, até o quanto sua mente puder registrar o passado, e o quanto ainda pode projetar certo futuro (o que é bastante reduzido em relação a Ishvara). Dessa perspectiva, nenhuma mente individual tem a capacidade de penetrar na mente cósmica e saber tudo o que está ali, apesar de a mente individual fazer parte daquela.11 A verdade de Ishvara seria, portanto, a verdade do indivíduo; no entanto, o indivíduo não teria como saber todos os detalhes que estão incluídos nisto, ainda porque estes estariam em constante transformação.

À medida que a mente se torna menos confusa, com maior capacidade de entender e questionar, explicam-me os interlocutores, o desejo pelo autoconhecimento se torna mais forte e, consequentemente, o indivíduo teria consciência de que deseja adquirir um conhecimento que irá ‘relaxar’ sua busca por alguma coisa ou por ele mesmo – um conhecimento que o ‘tranquilizará’. É neste sentido que deve ser entendido o tornar-se completamente ‘livre’ da ilusão da dualidade vivendo na dualidade. Não seria necessário, então, isolar-se ou ir para uma caverna, mas ser ‘livre’ da ilusão da dualidade tem o significado de estar livre da ilusão em relação aos objetos como fonte de felicidade, no sentido de que estes trariam o bem maior ou a sua identidade com eles.

O sentido da devoção
Analisar o sentido de devoção é algo fundamental para a compreensão dos motivos pelos quais alguns vedantinos se consideram ‘hindus’ e o que entendem por isto. Como existem muitos entendimentos em relação ao sentido de devoção, compreendê-lo como é proposto em Vedanta se torna algo complexo, devido aos conceitos adquiridos de outras culturas e religiões.

Quando Krishna diz: “Eu sou o libertador dessas pessoas” ou “Ishvara é o libertador do oceano do samsara” (que é caracterizado por morte), como entender esse ‘libertar’ que está sendo proposto? O conceito ‘liberdade’ cria polêmica e confusão. Existem palavras que podem levar a um entendimento errado ou mesmo contrário à intenção, e é devido a isso que pondero sobre qual palavra usar. Entendo que a melhor maneira de explica-lo seja compreender o conceito segundo a tradição védica. A maneira que Krishna explica a devoção não é abstratamente ‘busque Ishvara’, mas, quando o indivíduo procura ser um yogi, ao fazer a ação apreciando a ordem cósmica ou Ishvara, já estaria, necessariamente, livre da ação.

Krishna ensina que a pessoa deve realizar a ação e receber seu fruto, porque entende que o fruto é adequado a ela e porque existe uma ordem cósmica que governa a ação e o resultado. Krishna se refere ao devoto como aquele que renunciou a ação à Ishvara, quer dizer, ele realiza a ação e não permanece ponderando sobre sua consequência e, quando vier o resultado, ele recebe.

O devoto entende, portanto, que o resultado é o que a ordem cósmica está trazendo para ele, ou ainda, que é Ishvara, que tudo governa, “que está me dando isso”, e então recebe. As duas frases tem o mesmo significado, porque dizer que é a ordem cósmica que está proporcionando isso ou ‘Ishvara’ seria equivalente, já que Ishvara é entendido como a ordem ou ‘a lei que governa o todo’, e não alguém ou algo que estaria ali ‘salvando’ a pessoa. O que torna complicado o entendimento da ‘devoção’ são as palavras que já possuem um conceito na cultura ‘ocidental’, tais como ‘salvar’ ou ‘libertar’ do samsara, mas, ao entender o sentido do que está sendo dito como ‘renunciar’ a ação à Ishvara, compreende-se o que significa tornar-se ‘livre’ do samsara.

Se o indivíduo é alguém que busca o conhecimento, já existiria, portanto, um questionamento além da própria vida, ou seja, quando ele busca sair desse ciclo constante de alegrias e sofrimentos, começaria a questionar uma possibilidade além de apenas ‘segurança’ e ‘prazer’ e ponderaria sobre a existência de algo além. Segundo os interlocutores, a capacidade de questionar a própria vida e seus objetivos é algo bastante valorizado, pois quando eles buscam entender, ‘tudo’ se resolveria e, assim, não seria necessário ‘transformar’ nenhuma atitude – apenas tentar entendê-la. É ensinado que, ao entender a situação, a emoção que seria negativa para o indivíduo desaparece, pois o discernimento e o conhecimento o ‘libertam’ de emoções confusas e situações mal resolvidas (exatamente porque ele agora as entende) e, no momento que ele entende, a mudança seria ‘natural’.12

A busca desse conhecimento significa, para um vedantino, que em sua mente existe discernimento e valor pelo conhecimento. A proposta da Gita seria ‘entender’ e não ‘impor’ alguma coisa, pois é dito que, quando o conhecimento é o caminho da pessoa, existirá cada vez mais clareza em sua vida. O desejo pela liberação, como proposto, seria o desejo pelo conhecimento, por saber a verdade do universo; e a base da devoção significaria ter ‘firmeza no conhecimento’.

Na prática, o que é proposto em termos de ação, para um yogi, é tentar entender Ishvara, ter um estilo de vida no qual ele traz, em sua ação, a ordem cósmica na forma do dharma (que é Ishvara), pois esse tipo de mente (e de vida) será naturalmente ‘libertador’ do que é entendido como samsara, ‘estar mergulhado na confusão e na ilusão’. Assim, Ishvara se tornaria o ‘libertador do oceano do samsara’ quando a atitude desse yogi, de valorização pelo discernimento, torna-se o instrumento que o ‘livra’ do samsara. O oceano do samsara é entendido pela morte, ignorância, ilusão e confusão e, a partir disto, por todas as emoções que nascem da confusão (do entendimento da morte etc.) e é no sentido do esclarecimento disto que Ishvara seria o ‘libertador’ da ignorância ou da ilusão.

Como já sublinhado, o devoto é aquele que pensa, “eu faço porque deve ser feito” e, quando ele cumpre seu dharma, ele escolheria Ishvara. A devoção, então, teria o significado da percepção da identidade do devoto com Ishvara, se ele sabe que atma é consciência. A apreciação e o amor a Ishvara se tornarão total à medida que, para o devoto, não existe mais dois, mas um só – quando a pessoa conhece e entende Ishvara não existiria mais separação, e a devoção se tornaria ‘completa’.

Segundo a tradição védica, o mundo foi criado de forma que as pessoas tenham que colaborar para receber, que é entendido como ‘os direitos e deveres’ de cada um, dados pelo próprio universo. O sentido de ‘colaboração’ está no fato de a pessoa desempenhar seu papel, já que cada pessoa é um ser único, com uma combinação que não se repete, sendo uma criação única de Ishvara, o que exigiria dela uma contribuição ou oferecimento ao universo.

Como me foi explicado, à medida que a pessoa se relaciona com outros, facilmente aponta como eles deveriam agir, já que seria fácil entender, intelectualmente, o papel do outro, porque ela entende, dentro daquele problema ou situação, qual seria a melhor maneira de agir. Porém, quando chega a vez da pessoa, não estaria tão claro assim, devido a esse ‘emaranhado’ emocional, de suas tendências e do não entendimento claro das situações. Isto significa que, apesar de o dharma ser universal e poder ser entendido em relação ao outro, quando a pessoa está envolvida na situação, nem sempre consegue fazer aquilo que intelectualmente determinou. E por que ela é levada a agir de uma maneira diferente daquilo que acredita? Porque ainda não teria assimilado o valor por aquela atitude.

Cada um desses valores, como a paz, a verdade, a sinceridade ou não ser agressivo, deve ser entendido, dessa perspectiva, como valores que contribuem para a paz e a harmonia da mente (ou para uma capacidade de estar consigo mesmo) e, quando a pessoa entende a importância disto e o que ganha agindo assim (ela pode não ganhar de imediato, mas a longo prazo), não haveria possibilidade de fazer diferente, porque ela entende o que perderia – algo muito valorizado pelo grupo –, que é sua paz (ou a capacidade de estar em harmonia e em silêncio).

Esses valores, em Vedanta, são considerados ‘universais’ e entendidos como os que contribuem para o autoconhecimento, pois são os que fazem com que a mente fique yukta (integrada). Entende-se que aquilo que a pessoa discursa e o que faz é o mesmo, pois existe uma coerência em suas ações, falas e emoções, quer dizer, quanto mais coerente a pessoa é, mais ‘em paz’ sua mente estaria. Ressalto que o que está sendo enfatizado como agir de maneira adequada ou ter um estilo de vida yogi dependeria da obtenção de uma integração entre intelecto e emoção.

A busca espiritual enquanto projeto
O samsara é entendido, de acordo com a filosofia védica, como a continuidade de infelicidade e felicidade, nascimento e morte, um ciclo contínuo e sem fim. Krishna propõe que se tenha como objetivo na vida ir ‘além do samsara’ ou ‘libertar-se do samsara’ e, assim, explica a Arjuna o que significa buscar esse objetivo e como a pessoa desenvolve um desapego ao samsara. Como ninguém desenvolve um desapego por algo que é a única coisa que se conhece, só seria possível deixar o samsara se houvesse algo mais importante para substituí-lo. Mesmo não tendo um valor pelo samsara, se é tudo o que se tem (ou acredita), torna-se impossível de ser desconsiderado, sendo a única maneira de se desapegar do samsara, realmente, ter um objetivo ‘mais alto’ (buscar algo que seja ‘além’ dele).13

O objetivo de uma pessoa pode ser, dessa perspectiva, adquirir mais segurança e mais prazer ou, então, desejar algo ‘mais alto’, que pode ter o significado de ‘se sentir confortável consigo mesmo’ ou ‘descobrir uma plenitude em si mesmo’; seu objetivo também pode ser desejar estar ‘livre’ desse ciclo de ‘ter que fazer’, ‘ter que ser’, libertar- se dessa contínua transformação e, quando ela sabe que isso é o que busca em sua vida, os outros objetivos se tornariam secundários. É necessário esclarecer que, se a pessoa alcança a plenitude ou está bem consigo mesmo, ela não perderá essa plenitude tal como perdemos pessoas ou objetos durante a vida, porque a plenitude estaria dentro de si e seria independente das situações.

Os Vedas realizam uma detalhada análise a respeito dos objetivos na vida de uma pessoa; o objeto de sua análise é o entendimento do que ela está buscando na vida: aonde a pessoa quer chegar, qual é seu desejo maior e o que ela tem em mente como a coisa mais importante em sua vida. Segundo os Vedas, há quatro objetivos muito claros na vida das pessoas.

O primeiro é segurança. Todos, inclusive os animais, buscam um mínimo de segurança, como por exemplo: um lugar para se abrigar, um dinheiro guardado, uma casa, um emprego, uma situação na qual a pessoa possa se sentir segura. É descrito que muitas coisas na vida são buscadas em nome dessa segurança, por exemplo, por ‘detrás’ de muitos desejos, como querer ‘um emprego’ ou querer ‘estudar mais’, ou por detrás ‘dos contatos’, o questionamento trazido para sua vida é a respeito do que está por detrás desses objetivos: aonde a pessoa quer chegar. Dois fatos são descritos aqui: esse grande objetivo ocupa grande parte de seu tempo, e o que dará segurança a uns pode ser muito diferente do que dará segurança a outros.

Após alcançar um mínimo de segurança, a pessoa se sente menos preocupada com isso e é dito que, então, ela busca o prazer. O ser humano não está sozinho nesta busca, já que todos os animais também buscam segurança e prazer. Com isso, tendo um mínimo de segurança, a pessoa se ocupa em se sentir bem e confortável. O que é dito nos Vedas é que muitas pessoas permanecem nessa busca por segurança e prazer, ou seja, tudo em suas vidas tem esse foco.

Em determinado momento, a pessoa pode começar a questionar os meios de adquirir segurança e prazer: “será que são adequados?”; “Será que estou agindo de forma respeitosa ou estou me arrependendo do que faço?”; “É transparente?”. Isso indica que, em algum momento, existe um questionamento sobre os meios utilizados para conquistar segurança e prazer, o que é chamado de dharma, que é um questionamento sobre a legitimidade dos meios: se são adequados ou se a pessoa está fazendo outros sofrerem; se são confusos e ela gostaria de torná-los claros. É neste momento, o terceiro objetivo, que se questiona os ‘valores universais’. Por mais que a pessoa possa conquistar qualquer coisa em termos de segurança e prazer, se ela avalia e respeita os meios, ela não se sente tão ‘livre’ assim, ou seja, parece que, ao colocar uma medida do que é adequado ou não, ela estará perdendo sua liberdade.

Esse questionamento muitas vezes parece em vão e a pessoa pode se perguntar: “porque deveria colocar um limite? Eu faço meu máximo e as outras pessoas que se defendam”. Por outro lado, o que é ensinado é sobre a importância de agir de acordo com o dharma; se a pessoa não age assim, é porque não vê o que perde e, em contrapartida, quando se questiona os valores e a liberdade na ação, isto seria consequência de uma ‘maturidade emocional’, isto é, uma capacidade de ‘segurar’ certos desejos em nome de algo ‘maior’ – que significa, em última instância, adquirir um comando sobre si e uma coerência em sua vida. Esta coerência tem o significado de entender claramente e incorporar os ‘valores universais’ de forma que, quando a pessoa estiver analisando a vida e ação do outro, possa ter a mesma coerência de quando está analisando sua vida e ações, o que resultaria, portanto, em ter um único valor para si e para os outros.

É questionado, então, o porquê de se ter dois valores, um para ‘mim’ e outro para outras pessoas e é ensinado que, para o outro, a pessoa funciona através do intelecto e sabe qual ação é ou não adequada, mas em relação a si mesma, ela age de acordo com as emoções, porque entende seu problema e pensa, “eu não pude fazer diferente, e assim é tão mais fácil, eu resolvo tudo mais rapidamente”. Sua emoção ‘fala’ mais forte que o intelecto – exatamente porque ela ‘sabe’ que aquilo é ‘muito importante’, mas, ao fazer isto, muitas vezes nem pondera se alguém sairá ferido, pois ela estaria concentrada apenas em conseguir o que quer.

É dito que, se houver um questionamento, esse é o momento de ‘maturidade’, no qual não se consegue evitar pensar, avaliar e questionar; em que só agir em busca de segurança e prazer não satisfaz mais a pessoa e ela começa a pensar sobre a maneira como eles foram conquistados. É então que se começaria a sentir um ‘desconforto’. Este seria um momento decisivo, no qual ou se questiona a maneira de agir ou se começa a fazer coisas para não lidar com isso. Se não há questionamento, tende-se à distração e a evitar estar consigo, porque ao estar só, essas questões inevitavelmente surgem. Mas se a pessoa se organiza e encontra tempo para enfrentar essas questões, ela fará uma possível mudança em sua vida.

Estes questionamentos surgem na vida das pessoas porque, em determinado momento, todo ser humano encontra uma ‘maturidade’, assim como todo animal ou planta: chega uma hora em que a planta começa a brotar, em que a fruta amadurece e seria assim também com o ser humano, chega a hora em que ele começa a olhar para sua própria mente, seus desejos, objetivos e sua maneira de resolver os problemas. Este seria um momento complexo, porque pode levar a pessoa a fazer um questionamento a respeito de sua ação ou levar a pessoa a se sentir desconfortável dentro do próprio corpo – um sentimento de que aquela vida não está mais fazendo sentido e tem algo ali que não é suficiente.

É entendido como dharma o momento em que a pessoa faz uma ação e pode ‘assinar em baixo’; quando consegue entender o seu papel. Assim como ela exige que outros cumpram seu papel, colaborem e participem, ela também deve dar sua participação. A sociedade, em Vedanta, é entendida como um grupo: assim como se espera um tipo de ação das pessoas desse grupo, elas também esperam isso de nós. O adequado seria pensar em contribuir para que esse grupo esteja em harmonia e em paz, pois quando o grupo está em paz, ‘eu’ também estou (já que faço parte dele). Esse momento de questionamento sobre os valores é denominado de uma ‘vida de yoga’. É dito que ele demora muito tempo porque seria uma ‘transformação’ da maneira de agir de acordo com esse novo entendimento e visão de mundo.

Os Vedas continuam sua orientação e propõem que há outro passo na vida da pessoa: tendo adquirido certo comando sobre si, um entendimento mais profundo de si, tendo vivido uma ‘vida de yoga’, na qual se questiona e se entende sua ação e maneira de conquistar o que quer, seria então o momento em que outras questões são levantadas, questões que demoram um tempo para surgir, pois a maturidade (o dharma) deverá já estar estabelecida. Essa maturidade é equivalente a um sentimento de ‘estar consigo mesmo’ em meditação ou estar só e descobrir uma paz ali – e não um desconforto ou agitação.

Neste momento, outra insatisfação aparece, que é descrita da seguinte forma: a pessoa pensa consigo mesma que pode tantas coisas; existe uma contribuição de sua parte ao outro e uma certa segurança também, mas falta alguma coisa e ela não sabe dizer o que é. Vale lembrar que estar satisfeita não quer dizer que a pessoa tenha ‘tudo’ mas, se ela quiser muito ter algo, seria questão de apenas se empenhar tendo isto como objetivo em sua vida – bastaria concentrar todos seus esforços nessa direção que ela consegue –, mas a diferença aqui é no sentido de se conscientizar que isso não a fará mais feliz, e também de que não é isso que a deixa insatisfeita. É neste momento que a pessoa é considerada ‘amadurecida’ para estudar Vedanta.

Aprendi que se estuda Vedanta para estar livre de sentir que falta algo que a pessoa nem sabe o que é, como se existisse uma ‘insuficiência’ em sua vida ou nela mesma. Se ela soubesse do que se trata, buscaria, mas ela não tem a segurança do que é ‘isto’, qualquer que seja esse ‘isto’ que a fará feliz e completa; ela não sabe exatamente o que a irá preencher plenamente, o que a deixará completamente ‘relaxada’ consigo mesma, aceitando-se como é e tendo uma sensação de não querer nada em particular, de estar ‘livre’ dos desejos – o que não quer dizer não desejar coisas, mas que essas coisas não são desejos ‘fundamentais’, mas coisas ‘secundárias’. O fundamental seria a própria pessoa estar confortável consigo mesmo e não querer nada – essa é a questão em Vedanta, o desejo de moksha, que é o ‘quarto objetivo’ na vida da pessoa ou o ‘objetivo último’. Este objetivo conduziria a pessoa a estar confortável e satisfeita consigo mesma, de forma que ela possa fazer qualquer coisa e estar feliz, e não fazer coisas para estar feliz; é nesse sentido que é dito que existe uma ‘liberdade’ da ação: a pessoa já está bem, por isso ela pode fazer qualquer coisa ou não, desse modo haveria liberdade de ser quem ela é. Mas como conquistar isto? É ensinado nos Vedas que quem discerne esse problema é a quem Vedanta se dirige.

O ‘buscador’
Se, além de segurança e prazer, de alcançar uma maturidade emocional e ser mais coerente, a pessoa busca entender quem ela é e a realidade do próprio universo, essa busca significaria a aquisição de uma ‘maturidade espiritual’. Seria apenas uma busca, ela não chegou a nenhum lugar ainda, porém, ao discernir o problema, ela ‘relaxa’, porque a partir do momento em que entendeu a questão, ela conseguiria buscar o meio para resolvê-la. A maior angústia seria não entender o que está acontecendo consigo; e o entendimento de Vedanta possibilitaria discernir esse problema, fazendo com que este se torne mais claro, já que seria apenas uma questão de buscar a solução – mas o que importa é que o problema foi entendido.

É dito que a situação de sentir coisas e não saber dizer o que se sente acontece constantemente e a ‘grandeza’ do Vedanta seria analisar os sentimentos desse ‘buscador’, da pessoa que busca se libertar da ‘insuficiência’ dentro de si. À luz desse conhecimento, a pessoa se veria de forma ‘mais ampla’ frente ao outro, o que não seria uma ‘prática’ em particular, mas um entendimento de seu papel neste ‘cosmos’ (entender qual a relação entre o cosmos e o indivíduo). Nesse momento, existiria uma coerência, na qual ela veria uma lógica em tudo e um significado nesse todo (que a inclui). Uma mudança que ocorre é no sentido de ‘olhar’ para a vida de maneira diferente e, consequentemente, para a morte também, que é entendida como ‘aparente’, o momento em que o corpo ‘cai’ e não serve mais para nada (independente da idade que se tem). Seria ‘morte’ para quem olha o indivíduo, mas não para o próprio, porque ele continuaria sua trajetória. A morte é entendida como uma vírgula em sua vida, já que, segundo a tradição védica, ele leva uma ‘bagagem’ espiritual adquirida nessa vida para a seguinte.

O ‘objetivo último’ da vida, na visão dos Vedas, não é morrer e ir para o céu ou inferno (ou ficar no purgatório), mas alcançar a liberdade de ser um indivíduo ‘pleno e completo’, que na verdade a pessoa já é, mas não consegue perceber. O que significa que não é uma ‘transformação’ em termos de se tornar algo ‘diferente’; como os vedantinos entendem, a pessoa já é o máximo que pode ser, mas não usufruiu disto, porque não entende o que é. Esse processo levaria a uma transformação ‘interna’, no sentido de um entendimento de que ela seria um ser pleno e completo, perfeito em si mesmo, que não vai se ‘transformar’ para fazer nada, mas vai descobrir aquilo que já é. A pessoa sentiria uma experiência de ‘totalidade’ ‘dentro’ de si que, segundo os Vedas, é entendida como a sua ‘natureza’. Sugiro que existe, portanto, uma mudança de visão e de perspectiva: entender a verdade além da forma. A pessoa que estuda Vedanta geralmente tem esse ‘objetivo’ em mente.

É importante deixar claro que não seria uma questão de se a pessoa vai alcançar ou não seu objetivo, ou de como chegará lá. Pode demorar muito ou pouco, o que não importa. O relevante seria apenas ‘saber’ o que se quer, o que traria um ‘relaxamento’ e conforto em saber para onde se caminha (em qual direção). Krishna explica à Arjuna quem é o mumukshu: é a pessoa que deseja se libertar dessa insatisfação. Essa clareza de objetivo faz da pessoa um mumukshu, um ‘buscador’ da liberação.

Se a pessoa, por exemplo, tem uma cama, mas dorme no chão duro, se come o mínimo possível, se só fala a verdade, ou se leva uma vida de disciplina, mas sem um sentido ‘maior’, questiona-se para que ela faz tudo isso. Se a pessoa não sabe para quê, essas disciplinas se tornam inúteis; aonde ela quer chegar sendo tão rígida? Portanto, não seria uma questão de ter uma vida dura ou capacidade mental e intelectual o que traria sentido à sua vida, pois qualquer disciplina se torna inútil se ela não tem uma meta clara, mas essas disciplinas ganham significado se ela é um buscador, exatamente porque ela está ‘trabalhando’ em cima da sua meta. Com isso, o mumukshu é entendido como alguém que, vivenciando uma ‘vida de yoga’, tem clareza do seu desejo por moksha, por se libertar da insatisfação constante e insuficiência que o acompanha.

Dessa perspectiva, o termo yoga deve ser entendido como algo mais que uma prática, no sentido de ser uma forma de conduzir a vida de maneira consciente de si, com objetivo de contribuir para um grupo, tendo alcançado certa maturidade emocional (de domínio sobre si). Weber, ao sinalizar para a racionalidade implícita a este domínio, indica que a pessoa que vive uma ‘vida de yoga’ seria um “racionalista”, no sentido de sistematizar “racionalmente” não apenas seu próprio padrão de vida, como também sua rejeição a tudo que seja “eticamente irracional” ou dependente de suas próprias reações emotivas ao mundo e suas instituições; essa pessoa tem como objetivo específico o alerta e contínuo “controle metódico de seu próprio padrão de vida e comportamento” (1993:168). Weber afirma que o devoto se sente como “um guerreiro” (1993:169), indiferente de quem seja o inimigo e quais sejam os meios de fazer a guerra; além do mais, sua oposição ao mundo é psicologicamente sentida, não como um abandono, mas como uma repetida vitória sobre novas tentações às quais está sujeito a combater ativamente, a todo o momento.14

Sua racionalidade, segundo o autor (Weber 1993:170), seria apenas um instrumento para alcançar o objetivo da meditação ou contemplação; estas não necessariamente se tornam um abandono passivo aos sonhos ou a simples auto-hipnose, embora possam chegar a tais estados na prática; ao contrário, o caminho específico para a contemplação seria uma concentração bastante energética em certas verdades, que chegam a assumir uma posição central internamente e a exercer uma influência integradora sobre a visão total do mundo. Por outro lado, o yogi, chamado por Weber de ‘místico contemplativo’ não percebe o significado essencial do mundo e daí o compreende de forma racional, pela mesma razão que ele já concebeu o significado essencial do mundo como uma unidade além de toda realidade empírica. É dessa maneira que a contemplação nem sempre resultou em um abandono do mundo social no sentido de evitar qualquer contato com este mas, ao contrário, esse indivíduo pode requerer de si a manutenção de seu estado pleno contra cada pressão da ordem mundana, como um índice do caráter permanente deste estado.

Peter Berger explica que essa filosofia baseia-se em uma “extrema racionalidade” que se estende inclusive à solução estabelecida para o encerramento desse eterno ciclo: “a imersão mística na experiência da unidade Atman-Brahman encerra os movimentos do ego como entidade separada que está sujeita aos efeitos do karma-samsara e o ser alcança a libertação” (1985:77-79).

É nesse sentido que podemos entender a não existência, nos Vedas, de ‘mandamentos’, como ‘faça isto’ ou ‘não faça aquilo’, porque fazer ou não é consequência desta forma racional de conduzir a vida. Não seria ao nível da ação que se muda uma pessoa, porque quando ela adquire esse conhecimento, ela se modificaria naturalmente. Falar a verdade seria um exemplo desta transformação, no sentido de compreender que o caminho védico mostra o que se perde não falando a verdade (qual seria a perda que se tem ao mentir). Ao mentir, é ensinado que se criam duas pessoas dentro de si, uma que pensa e outra que age diferente do que pensa. Se ela pensa que é assim que deve fazer, mas faz de outra maneira, isto acabaria ‘criando’ duas pessoas, ou ‘lados’, dentro de si e, com isso, quando a pessoa decide, não conseguiria cumprir, já que a partir do momento em que ela diz o que pensa, quando age, faria de maneira diferente. É desse modo que ela iria percebendo algo ‘dual’ dentro de si, e isto seria uma grande perda, porque ela não se tornaria confiável nem mesmo para si.

Ao contrário, é dito que se ela consegue manter uma coerência na qual o que pensa é o que fala e faz, ela sabe que é coerente e não conseguiu agir de outra forma: ela fez o melhor que pôde naquela situação. Ao fazer o que disse e pôde fazer, existe um ‘relaxamento’ interno, uma visão interna de que quem fala, pensa e age seria a mesma pessoa. O aspecto de se tornar um yogi, alguém integrado, é altamente valorizado pelo grupo, que entende que a mente deve ser sua melhor ‘amiga’ ou ‘aliada’, pois ele percebe as perdas que tem ao agir de maneira dual. Como as pessoas são apegadas às ações e certas atitudes, a mudança, portanto, torna-se complexa, até porque elas, geralmente, não estão preparadas para mudar de um dia para outro. A transformação que está sendo proposta em Vedanta aconteceria a partir de um entendimento do que tem valor ou não para si e, dessa forma, seria considerada um método ‘racional’ que, acima de tudo, induziria ao questionamento.

Vejo um paralelo no significado de uma vida de yoga discutida aqui com o que Madan denomina uma “vida de um Pandit”, na qual o discernimento é a “palavra de ordem” desse estilo de vida; é esperado que um Pandit permaneça sempre atento à existência de algo mais alto do que ter um bom karma, que seria a graça divina; o caminho do poder oculto ou da renúncia seria para poucos, para o cidadão comum, a vida do “homem-no-mundo”, embora árdua, seria a vida boa, ética e válida de ser vivida (1988:46-47).

Considerações finais
Este trabalho buscou compreender o ‘pensamento nativo’ de modo que seu propósito não se concentra totalmente em interpretar e racionalizar esse pensamento, mas “passa a ser o de utilizar, tirar suas consequências, verificar os efeitos que ele pode produzir no nosso” (Viveiros de Castro 2002:129).

Pensar o ‘pensamento nativo’, no caso pesquisado aqui, envolve se pensar como buscador, termo que é entendido, pelos vedantinos, como alguém que tem clareza do que quer e, ter esta meta clara – do desejo pela liberação (se liberar da sensação de insatisfação e insuficiência) –, é considerado fundamental para estudar Vedanta. Ao fazer uma imersão no universo nativo, observei que alguns vedantinos também se consideram devotos, conceito que envolve a noção da existência de uma ordem. A religiosidade, neste caso, parece ajustar suas ações a uma ordem cósmica imaginada que, de acordo com Clifford Geertz, projeta imagens dessa ordem no plano da experiência humana. Isso não é uma novidade, indica o antropólogo, que reconhece que essa noção não é investigada e que, na verdade, sabe-se muito pouco sobre como é realizado esse “milagre particular” (1989:104). Assinalo que esse foi o propósito deste artigo – uma tentativa de compreender como esse ‘milagre’ é realizado na experiência dos vedantinos.

O devoto, como observei e vivenciei junto ao grupo, entende que tudo o que acontece tem uma lógica ou função e, assim, está dentro de uma ‘ordem’. Ele considera que existe ‘algo maior’ que dá sentido a tudo e, por isso, tem confiança de que o futuro é uma resposta do passado (conceito de karma). Segundo os vedantinos, a espiritualidade teria o significado do entendimento de que existe uma ordem cósmica e que não se pode achar que somos responsáveis pelo que acontece no universo, conosco e com os outros.

A tradição védica está baseada no tripé ‘escutar, refletir e contemplar’, o que quer dizer que a pessoa deve, além de escutar e refletir sobre o ensinamento, assimilá-lo de maneira que seja incorporado. Essa incorporação é percebida quando a pessoa age – baseada no aprendizado – ‘naturalmente’, isto é, ‘sem pensar’, pois o conhecimento já estaria assimilado. Os entrevistados procuram vivenciar o aprendizado recebido e isso, portanto, influencia a maneira como passam a construir suas visões de mundo. Essa assimilação está baseada na crença de não importar a onde nem o que a pessoa esteja fazendo, mas o fundamental seria a maneira como pensa a respeito de suas ações, o que torna essa religiosidade tanto racional como ‘fundamentalmente cultural’ (Lipner 1994). Incorporar esse aprendizado revela uma percepção do que se vê como manifestação da cultura védica e, também, do ensinamento dessa filosofia de vida – e este se torna seu objetivo, no sentido de tudo em suas vidas remeter a essa percepção, o que faz com que a manifestação desse aprendizado se torne mais recorrente.

Meu relato do Vedanta como algo particular é válido em um sentido específico, pois o distingue e diferencia de outras religiosidades e práticas espirituais. Apesar deste artigo se concentrar na interface entre identidade e crença e em como os membros entendem a experiência espiritual, acima de tudo, baseia-se em como eu entendi o olhar deles sobre o Vedanta.

Notas:
1) A tese foi publicada pela Editora Prismas. Ver Bastos (2016a).
2) Para maiores informações sobre a pesquisa de campo na Índia e junto ao grupo de vedantinos, ver Bastos (2016b, 2016c, 2017a, 2017b, 2018).
3) Berger & Luckmann (1996) explicam que o habitante da grande metrópole vive permanentemente em contato com ‘mundos’ e regiões morais diferentes e, assim, está permanentemente recebendo estímulos e se deslocando entre ambientes e experiências variados. Com isso, Velho esclarece que, quanto mais exposto estiver o ator a “experiências diversificadas, quanto mais tiver de dar conta de ethos e visões de mundo contrastantes, quanto menos fechada for sua rede de relação ao nível do seu cotidiano, mais marcada será a sua autopercepção de individualidade singular” (2013:107); a essa consciência da individualidade corresponderá uma maior elaboração de um projeto, pois ele será estimulado e encontrará uma linguagem própria para expressá-lo.
4) O local onde o grupo pesquisado se reúne é chamado Vidya Mandir, cujo significado é ‘templo do conhecimento’, que é uma associação cultural sem fins lucrativos, localizada no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro.
5) Continuei frequentando outros cursos de Vedanta, após o término do curso da Bhagavad Gita, como o Tattvabodha, o Upadesasaram, o Atmabodhah, a Katha Upanishad, Mundaka Upanishad e a Taittiriya Upanishad. 6) Dumont se refere à posição da filosofia na sociedade tradicional hindu e explica que, na Índia, assim como a lógica, a filosofia, proclamada “juiz crítico de todas as coisas” (inclusive do que é o dharma ou contrário a ele), vem em primeiro lugar: “essa subordinação da religião à razão crítica é, sem dúvida, excepcional e merece ser sublinhada: ela marca sem ambiguidade a ‘secularização’” (1992:349). 7) Na verdade, em Vedanta não se fala em alcançar a liberação, mas em se conscientizar de que já é liberado. Não há nada para alcançar se a pessoa já é o que busca ser. Há, apenas, um reconhecimento de sua verdadeira natureza, que é livre.
8) Zimmer (1979) escreve que o cosmos é efeito da ignorância e também o ego interior, que em todas as partes é confundido com o ‘Eu’ – a ilusão (maya) engana a cada instante as faculdades da percepção, do pensamento e da intuição, deixando o ‘Eu’ em um escuro abismo, mas quando se conhece o ‘Eu’ não há ignorância, não há maya.
9) Esta consciência é entendida por Eliade como “consciência-testemunha”, ou seja, “a consciência desembaraçada de suas estruturas psicofisiológicas e de seu condicionamento temporal, a consciência do ‘liberado’, isto é, daquele que conseguiu livrar-se da temporalidade e partiu em busca da verdade, da inefável liberdade” (1996:14).
10) Quando, por exemplo, temos um objeto vermelho que, devido à luz do sol, projeta o seu reflexo em um cristal, isso seria um ‘condicionamento’ que nos faz concluir que é uma coisa, quando de fato não é, quer dizer, sem criar uma transformação, ele produz outro estado e, assim, seria apenas um condicionante, algo que dá um colorido, mas não transforma o objeto (ele nos leva a experiência daquilo sem transformação).
11) O indivíduo poderia até ter intuição do que acontecerá, perceber o que o outro pensa, ‘entrar’ na mente de alguém, isso seria possível, porque os vedantinos entendem que todas as mentes estão ‘dentro’ da mente cósmica. Assim como entendem que, se de um lado há uma ordem que tudo governa, de outro seria impossível saber de tudo, porque seria muito além da capacidade de compreensão de uma mente individual. 12) Esclareço que as emoções não devem ser julgadas como certas ou erradas, não sendo experienciadas, ou ao menos não devendo ser experienciadas, como ligadas a representações públicas do ‘eu’, explica Heelas (1986). Segundo esse antropólogo, a vida emocional é diferenciada, complexa e o aspecto mais poderoso de nossas vidas.
13) Ramana Maharishi diz que somente quando se descobre quem a pessoa é, de verdade, pode-se encontrar sua verdadeira entidade, destituída do ego (Godman 1992). Como ensinado no curso da Gita, a questão se baseia no apego emocional ao ahamkara (identificação ou apego ao ego), a toda uma personalidade e uma maneira de ser, no sentido de isso não permitir, mesmo entendendo que a pessoa não é o ego, desapegar-se de sua personalidade (da identificação com o ego), porque isto é tudo o que a pessoa conhece concretamente, sua personalidade seria esse ‘eu’. Ela não consegue enxergar o ‘Eu’ consciência, porque esse outro ‘eu’ é especial e querido para ela e, em qualquer situação de crítica a esse ahamkara, ela reage, porque já está apegada e confortável com essa maneira de ser e, desse modo, não percebe outra maneira, ou seja, ela acha melhor não largar o que já conhece enquanto não tiver certeza da outra maneira de ser – é dessa forma que os interlocutores entendem que ela permanece apegada à ilusão e à ignorância.
14) Entende-se tentações no sentido de reações ao que a ordem cósmica trouxe para a pessoa; e o ideal ióguico é não reagir, mas agir (dessa maneira racional descrita acima).

Referências:
BASTOS, Cecilia. 2016a. Em busca de espiritualidade na Índia: os significados de uma moderna peregrinação. Curitiba: Editora Prismas.
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Cecilia Bastos (ceciliagbastos arroba gmail.com)

Resumo:

Devoção e Yoga nas Camadas Médias do Rio de Janeiro: análise do campo nos estudos da Bhagavad Gita

Este artigo retrata o trabalho de campo de aproximadamente dez anos de convívio com um grupo de estudantes de Vedanta do Rio de Janeiro. Ao participar das aulas do curso da Bhagavad Gita, principal texto estudado em Vedanta, verifiquei como os alunos entendem a prática da meditação, o ‘Eu’ consciência, seu papel (dharma) no mundo, a ‘ordem’ cósmica, o sentido de devoção e as mudanças decorrentes de seus projetos de busca da ‘liberação’ do samsara – um ciclo contínuo e sem fim marcado pela ignorância, ilusão e confusão. Acima de tudo, procurei analisar o sentido de suas buscas espirituais entendidas como ‘objetivo último’ ou projeto de vida, o que envolveu a investigação do que querem dizer quando se denominam ‘buscadores’ e do que entendem como ‘vida de yoga’.

Palavras-chave: Devoção, Yoga, Bhagavad Gita, Racionalidade.


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